quinta-feira, 24 de julho de 2008

O bairro.

Vítor irrompeu na sala de Dona Maria gritando. No primeiro momento não se entendeu nada do que ele pronunciava. Falava rapidamente, sem pausas, com um aspecto fragilizado e alarmado. Dona Maria, que estava preparando o almoço na cozinha, lavou as mãos e andou vagarosamente para ouvir o que o pequeno Vítor tinha a lhe falar, não imaginando que a notícia mudaria o modo de vida de todo o seu bairro.
- Tia! Tia! Encontraram um corpo! – depois de muito esforço, conseguiu-se distinguir apenas estas palavras. Dona Maria tinha experiência com essas crianças que só faziam traquinagens e bagunça na sua casa e em seu bairro, mas não entendeu como deveria o recado de Vítor.
- Quê corpo, moleque? – perguntou asperamente.
- Corpo, tia! Corpo de gente. Corpo morto! Vem comigo! – replicou ele, puxando Dona Maria para janela. Era um dia ensolarado e bonito de outubro em Florianópolis. Esta época, no auge da primavera, os dias eram mansos e o tempo passava, aos sentidos dela, muito vagarosamente. De onde estavam avistavam-se três viaturas de polícia em frente ao terreno baldio do bairro. Entendeu, então, que alguma coisa séria estava acontecendo.
- Luíza, cuida da comida que vou ver o que tá acontecendo. – Disse ela a sua filha, saindo com um Vítor alucinado a sua frente. Andar para Dona Maria já não era tão fácil. No auge de seus sessenta anos, a caminhada de apenas duas quadras doía como uma maratona e a hérnia – que a incomodava há décadas – parecia gritar-lhe a cada passo. Aproximando-se do terreno, avistou dois policias cochichando asperamente entre si. O mais alto portava um canhoto e um lápis e fazia anotações enquanto o mais baixo e careca falava-lhe algo que poderiam ser instruções. Ou insultos. Dona Maria os conhecia muitos bem.
- Bom dia, Srs. policiais. – disse ela aproximando-se com um ar de superioridade, o qual era a sua característica.
- Dona Maria! – Falou o careca de menor estatura, com a sua voz arrastada e fazendo um breve aceno com a cabeça. – Está tudo sob controle, daqui a pouco o Delegado vai passar na casa da Sra e explicar o que está acontecendo.
- Se eu estou aqui, quero saber o que está acontecendo agora. – retrucou, colocando as mãos na cintura. O mais alto, que atendia pelo nome de Válber, ficou sem graça, arrumou os óculos escuros e entrou na viatura para fazer algum pedido pelo rádio.
- Acharam um corpo. – Disse ele a contragosto.
- Eu não falei, tia! – gritou Vítor, que ainda estava por ali muito excitado. – um corpo de gente, né moço?
- Quem é o sujeito? – perguntou ela, perdendo a paciência.
O policial olhou para baixo, protelando sua fala. Dona Maria percebeu que estava suando e que notícia boa não deveria ser.
- Eu acho que a Sra o conhece - resmungou finalmente - o nome dele é Cléber José Vieira. Mais conhecido como Binho.
Por um momento Dona Maria não entendeu, foi processando lentamente as palavras do policial careca. Quando a mensagem se fez clara, ficou tonta e cambaleou. Teve de ser amparada por ele para não cair sentada. Olhou para o terreno e sentiu as lágrimas escorrendo em seu rosto. Ficando firme e recomposta novamente, deu as costas ao policial e seguiu determinada para a sua casa: tinha muito a fazer. E, certamente, esses afazeres não eram, nem um pouco, relacionados ao almoço daquele dia.

Nenhum comentário: